O que define um regime autoritário?

Especialistas apontam as estratégias de ascensão e controle que caracterizam as ditaduras

Adolf Hitler, líder do nazifascismo, nas décadas de 1930 e 1940/Foto: Revista Galileu

Por Julia Mayumi, Mariangela Castro, Nathalia Giannetti e Rebecca Gompertz,

Qual ideologia você quer para viver? As últimas eleições, no Brasil e no mundo, têm demonstrado um crescimento da extrema-direita, com o nacionalismo e o autoritarismo marcando presença forte. Há quem acredite que a democracia está ameaçada; outros defendem que não é bem assim. Mas o que é preciso para que um governo ditatorial se instaure? E como se mantém no controle?

Para o professor Pedro Puntoni, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), as ditaduras são “sistemas políticos que usurparam a soberania popular”, ou seja, são formas de governo que utilizam a repressão e o controle da informação para se manterem no poder. Em geral, elas surgem em momentos de crises socioeconômicas, quando a população se sente insegura e opta por respostas rápidas, que podem ir contra valores da democracia, mesmo que elas se mostrem ineficientes.

As explicações para o desejo de diferentes grupos por governos autoritários variam, mas muitos especialistas afirmam que isso ocorre em resposta a situações sociais e econômicas que causem instabilidade no país.

Conforme diz Marcos Alvarez, sociólogo e professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, surge uma urgência de combate a um inimigo e, com isso, os chamados “pânicos morais”: “Trata-se da construção de temas que precisam de uma resposta urgente, uma resposta autoritária. É inevitável que em sociedades como a brasileira tenhamos muitos problemas, sendo a violência um dos maiores deles, e esses ‘pânicos morais’ levam a respostas que ferem os valores democráticos, além de terem grandes chances de serem ineficazes”.

Já Domenico Uhng Hur, professor da Universidade Federal de Goiás e especialista em Psicologia Política, destaca que o que leva a pedidos por esses governos autoritários são crises da subjetividade somadas a crises econômicas: “O capitalismo nos promete felicidade, satisfação pela riqueza, mas o que vemos é o contrário, gente cansada e esgotada. Há uma crise da subjetividade capitalista no sentido que ela não promove o que prometia. Discursos autoritários vem como contenção a esse mal-estar, tanto do ponto de vista macroeconômico como do ponto de vista psicológico”.

República de Weimar (1919-1933), governo que antecedeu o regime nazista na Alemanhã, foi marcada por intensa crise econômica. Na foto, ex-soldado da Primeira Guerra Mundial pede esmolas na rua. Foto: Wikipedia

Dessa forma, busca-se a restituição da ordem através da figura do líder forte: “O discurso autoritário hoje dá segurança emocional. No caso do Bolsonaro, traz o ideal da mudança, do homem forte carismático que vai trazer essa regulação emocional”, continua Hur.

Uma ditadura pode ou não se instalar a partir de um processo democrático. Segundo a professora Mayra Rodrigues, do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), políticos eleitos podem estender seus mandatos a partir de aprovações do Poder Legislativo. O governante, portanto, permanece em seu cargo por um tempo muito maior do que o definido anteriormente, de forma aparentemente legal. Nesses casos, o presidente precisa do apoio do Congresso para se manter no poder.

Em 1922,Benito Mussolini foi nomeado primeiro ministro da Itália pelo rei Vitório Emanuel. Foto: Wikipedia

Para que haja um golpe de Estado, no entanto, é necessário apoio do setor militar. “Nas últimas ditaduras da América Latina, em geral, há um aparato de exército. A nossa ditadura foi um golpe de militares na ativa”, aponta Mayra. Quanto ao apoio popular, Puntoni acredita que não é necessário para o início de uma ditadura. No Chile, por exemplo, o regime democrático foi derrubado com um ataque militar que terminou na morte do então presidente Allende. “A versão do governo da época é que foi suicídio, mas ele foi assassinado. Não foi o apoio popular que levou Pinochet ao poder, foi a força das armas”.

No entanto, a população, através de mecanismos de controle social, pode ser utilizada como forma do regime se manter no poder. Durante o período nazista na Alemanha, por exemplo, Hitler foi indicado para Primeiro Ministro pois seu partido conseguira muitos votos. A partir daí, iniciou-se um golpe que encerrou a República. A propaganda política e o controle da informação foram ferramentas utilizadas pelo governo para conseguir apoio do povo.

Estratégias discursivas

De maneira a conseguir o apoio da população e, consequentemente, o controle sobre ela, um regime totalitário lança uma série de artifícios. Entre elas estão aquelas referentes ao discurso, ou seja, aos enunciados proferidos pelo governo que tem como objetivo convencer sobre a boas intenções do regime implantado.  

Uma das principais estratégias discursivas é a do populismo. Nele, o governante procura se encaixar na figura de “pai da nação”. “Esse apelo é para o povo e vem na forma de um personagem do grande defensor da população. Aquela pessoa se torna a salvadora da pátria. Ele promete o atendimento às necessidades básicas da população”, conta a professora Mayra Gomes. Ao fazer promessas de melhorias a uma nação decadente, o demagogo ganha adesão e, a partir de algumas atitudes paternalistas durante seu governo, mantém o povo sob seu controle.

O Estado Novo (1937-1945) pode ser citado como o grande exemplo da tática populista. Durante esse período, Getúlio Vargas conquistou as massas, promoveu uma nova Constituição que tratava de assuntos como salário mínimo, horas de trabalho e férias e criou a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que regulamentou a relação patrão-operário. Esta última ação está inserida em um contexto em que o presidente tentava manter seu poder após a queda do totalitarismo europeu. “Ele começa seus discursos apelando para o povo, com a promessa de atender a necessidade da vasta massa da população”, diz a professora. O sucesso da estratégia se demonstra quando, um pouco antes do fim do governo do presidente, a população organizou o movimento “queremos Getúlio”, o queremismo, que, apesar de não ter tido efeitos imediatos, manteve-se vivo até a eleição de Vargas para o cargo em 1950.  

Queremismo: Manifestação popular que pedia a permanência de Getúlio Vargas no cargo de presidente da República. Foto: Mundo Educação

Outro grande apelo discursivo é o do inimigo comum. “A grande tônica do regime é sempre o discurso do inimigo comum, ele constitui uma narrativa sobre si próprio, de combate à aquele que vai corromper a nação e do qual deve se ter distância”, aponta Mayra.  Essa ideia não é estranha a democracias e se faz presente com frequência em campanhas políticas. Durante o período da eleição presidencial dos Estados Unidos de 2016, por exemplo, o agora presidente Donald Trump proferiu vários ataques aos imigrantes latinos, que seriam, segundo ele, culpados por grande parte do desemprego e violência vivenciados no país. Já no caso de regimes autoritários, isso apareceria de uma maneira muito mais agressiva.

A questão do inimigo comum, de acordo com Gomes, não chega a se tratar de manipulação. “É uma estratégia. Manipula no sentido de aproveitar algumas tendências daquele povo para conseguir adesão. Trabalha em cima de algo que já está lá”. No contexto da Alemanha Nazista, o antissemitismo já apresentava sinais de sua existência anos antes da ascensão de Adolf Hitler. “O alemão que não gostava de judeus estava à espera de que alguém chegasse dizendo que pensava as mesmas coisas sobre eles”. Em relação à Ditadura Militar (1964-1985) vivenciada pelo Brasil, o inimigo comum era a suposta ameaça comunista que rondava o país durante o período mais extremo da Guerra Fria. “A população, em geral, era a favor da ditadura, para eles isso iria no livrar grande perigo do comunismo”, conta Mayra.

Cartaz de propaganda nazista ao lado do pôster do filme anti semita O eterno judeu . Fotos: Wikipedia

A principal forma desse discurso aparecer, além dos pronunciamentos governamentais, é por meio da propaganda. Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler foi fundamental para normalização do ideal nazista dentro da sociedade alemã. Eram veiculados vários cartazes, filmes, revistas, livros e peças de teatro que representavam a “raça ariana” triunfante, enquanto os judeus apareciam como “subhumanos”, parasitas interessados apenas em dinheiro.

Foto: Terraço Econômico

Já o regime militar brasileiro utilizava a propaganda de modo a intensificar a relação de poder existente entre o governo e a população. “Se tenho uma sociedade, terei relações de poder. Em formas autoritárias de dominação, há uma intensificação em termos de produção de discurso com essas relações”, diz o professor Marcos Alvarez. Durante as suas décadas de duração, era comum encontrar enunciados de cunho ufanista e que reafirmavam a dominação vigente. “Quem não vive para servir ao país, não serve para viver no Brasil” e “Brasil, ame-o ou deixe-osão claros exemplos dos termos a serem seguidos para não ser caçado pelas forças do governo. “Havia uma interpelação em relação a população, dizendo que nenhuma dissidência era possível, nenhum conflito era possível”, atesta o professor.

Estratégias práticas

Além das estratégias discursivas, uma ditadura também precisa de estratégias práticas para se erguer e se estabilizar. Uma delas está muito relacionada com o discurso de integridade da nação e, em nome disso, quer estatizar todas as empresas de uma país.

“A estatização pode ser perigosa. Um estado autoritário geralmente quer estatizar toda a indústria e os grandes produtores”, explica a professora Mayra. Foi o que aconteceu na Venezuela, que possui 526 empresas estatais atualmente, empregando 5,6% da população ocupada formalmente no país, segundo dados da Gazeta do Povo. Três em cada quatro dessas empresas foram criadas, expropriadas ou confiscadas durante os governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

A Petróleos da Venezuela é uma das maiores estatais do país. Foto: O Petróleo

A punição é outra estratégia prática extrema para se manter no poder. O ato de punir alguém já demonstra a existência de uma forte relação de poder. Em regimes autoritários, isso intensifica, a punição é utilizada cada vez com mais frequência e de forma arbitrária.A tortura é algo que é condenável em termos de qualquer sociedade democrática, em qualquer processo civilizador”, comenta o professor de ciências sociais, Marcos Alvarez.

Entre 1964 e 1985, período no qual perdurou o regime militar no Brasil, 293 pessoas foram assassinadas e, ao todo, 424 desaparecidas, segundo relatório da Comissão da Verdade da USP. Utilizar punição (física, moral ou social) arbitrária tem objetivo de silenciar vozes contrárias ao regime, afinal, em uma ditadura a oposição é perseguida. Neste sentido, a ditadura caça alguns direitos, como habeas corpus, organização sindical, direito de expressão e liberdade de imprensa.

Policiais reprimem manifestação de estudantes contra a Ditadura Militar em 1977/Foto:Adriana Nery/Estadão Conteúdo. ARQUIVO

Imprensa em regime autoritário

Para o professor de Ética e jornalista Eugênio Bucci, “se você quer saber se um regime é democrático ou é um ditadura, e tem dúvida sobre isso, basta ver o que está acontecendo com a liberdade de imprensa”.

No regime militar brasileiro, dentro das redações de jornais havia representantes dos órgãos de repressão do governo, que liam com antecedência todas as reportagens e artigos e definiam o que poderia ou não ser publicado. “Isso não deixa de ser um tipo de manipulação, afinal era uma autoridade estatal manipulando o conteúdo jornalístico antes dele chegar ao público. Mas mais importante que isso, é dizer que houve censura”.

Um dos principais objetivos de um regime ditatorial é eliminar a diversidade de informação. Segundo Mayra Rodrigues, “quando as grandes ditaduras conseguem se consolidar, possuem apenas um jornal”.

Este foi o caso do Pravda, principal jornal da União Soviética cuja tradução significa “Verdade”. A ideia é que exista apenas uma voz verdadeira, a do governo. Apesar de sempre existirem jornais alternativos escondidos, a chamada “imprensa debaixo do pano” tinha impressões apreendidas a todo momento. “Em uma ditadura, os jornais deixam de existir”, explica a professora.

O jornal Pravda da URSS. Foto: Wikipedia

Se o regime autoritário é mais radical e tem aparato militar, ele simplesmente fecha as redações. Se quer tomar caminhos mais amenos, o Estado se infiltra e compra as mídias de forma ilícita. Isso é uma estratégia prática para acabar com a oposição.

É importante ressaltar que existe diferença entre imprensa e informativos governamentais. Na Coreia do Norte, por exemplo, existem jornais impressos, sites e redes televisivas. “Estes canais parecem uma imprensa, tem cara de imprensa, mas não são. Trabalham apenas como informativos do governo”, explica o professor Eugênio Bucci. A verdade é que, segundo ele, em uma ditadura não é possível existir imprensa. “Só é possível existir imprensa dentro de uma democracia, em uma ditadura existe apenas a resistência”.

Capa do “Rodong Sinmun”, o jornal do governo norte-coreano (Foto: Reprodução/Rodong Sinmun)

No Brasil, durante o regime militar, os grandes jornais publicavam receitas de bolo no lugar das matérias censuradas, mas com o tempo isso também deixou de ser permitido. “Silenciar a imprensa impede a sociedade de discutir seus problemas. Por definição, toda ditadura começa pela extinção da liberdade de imprensa”.

O Brasil vai virar uma ditadura?

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A eleição de Jair Bolsonaro trouxe a muitos o medo de que se instaurasse uma nova ditadura no país. As opiniões dos especialistas sobre esse assunto se dividem. Para Pedro Puntoni existe a possibilidade de o Brasil voltar a uma ditadura. “Estamos em um processo muito polarizado no sentido da extrema-direita. Quando o presidente do STF precisa dizer que o presidente da República, independente de quem for eleito, deverá respeitar a Constituição, só dele precisar falar isso já mostra um problema”, explica ele.

Em contraponto, o professor Hur acredita que há poucas chances de ser este o caso: “Não acho que ele vá implantar uma ditadura porque trata-se de um deputado mais ‘baixo clero’ que conseguiu votações expressivas a partir dessa retórica populista que preza a mudança, maneja muito bem os afetos e, como todo populismo, cria um inimigo. Se o Trump cria os imigrantes como inimigos, o Bolsonaro criou as esquerdas e minorias. Minha aposta é que isso será mais retórico do que concreto”.

Um ponto fundamental sobre o qual existe consenso entretanto é a necessidade de se respeitar os direitos humanos no novo governo. “Os direitos humanos são fundamentais porque são direitos universais, de acesso à própria cidadania, de afirmação da democracia, da dignidade humana. Eles são os limites e as fundações que não dá pra se negociar em uma sociedade democrática”, explicou o professor Marcos.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*