EUA levaram Recife ao topo do ranking mundial de consumo de whisky

Influência dos Estados Unidos no pós-guerra alterou hábitos alimentares na capital pernambucana

Em 1941, a Coca-Cola fabricou em Recife o seu primeiro refrigerante em solo brasileiro, na fábrica de água mineral Santa Clara. Foto: Coca-Cola Journey

A hegemonia cultural de um país se nota pela influência que este exerce sobre os costumes de outros povos. Os hábitos alimentares de uma nação, sendo parte de sua história cultural, não está imune a essa interferência estrangeira. O gastrônomo e historiador Frederico de Oliveira Toscano estudou a influência estadunidense na alimentação do Recife entre 1930 e 1964, em sua tese de doutorado Yes, nós temos Coca-Cola: práticas e sociabilidades dos Estados Unidos na alimentação do Recife (1930-1964), desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Toscano conta que durante o mestrado estudou o período anterior: do final do século 19 até os anos 1920. Nesse intervalo de tempo, a presença estrangeira mais importante na capital de Pernambuco era francesa. “A partir de 1930 há uma mudança paradigmática e cultural no Brasil e em outros países do ocidente”, conta o pesquisador. As nações que antes olhavam para a Europa em busca de referências culturais ao mesmo tempo em que tentavam firmar uma cultura própria , viraram suas atenções para a América do Norte.

Essa alteração no cenário global se explica principalmente pelos resultados das duas grandes guerras, segundo Toscano. “Na Primeira Guerra, a França já levou um baque, assim como toda a Europa. O encanto europeu se quebrou”, explica. Ao final da Segunda Guerra Mundial, já em 1945, finalmente os Estados Unidos emergiram como a grande potência e referência mundial. “Foi o único país – mesmo dentre os vitoriosos – a sair com a economia de vento em popa”, lembra Toscano. E afirma: “Os americanos souberam marketizar sua participação na guerra como nenhum outro povo”.  

A exportação cultural norte-americana se deu, segundo o pesquisador, pelas facilidades trazidas pelo avanço tecnológico da época, que “tornou o planeta menor, aproximou os países”. Nesse cenário os Estados Unidos se destacavam, com uma industrialização intensa e um poderio econômico único. Hollywood passou a lançar filmes num ritmo inalcançável. Era impossível competir, mesmo para a capital pernambucana, “nossa pequena Hollywood”, maior produtora de filmes do país à época. Os brasileiros se acostumaram a assistir apenas produções norte-americanas e as telas do cinema traziam uma outra realidade: “Mostravam as grandes cidades, o desenvolvimento industrial, a abundância de tudo… Era impossível não se encantar”, comenta o historiador.    

Além do cinema, Toscano lembra a influência do rádio, que trouxe o jazz para o país, e mesmo a mudança na educação: os livros de faculdade, que antes eram escritos em francês, começaram a ser traduzidos para o inglês.

Como não podia deixar de ser, a presença estrangeira chegou até a mesa dos recifenses. Inspirados nos militares norte-americanos, eles passaram a consumir whisky, por exemplo. Haviam bases militares norte-americanas no Recife durante a Segunda Guerra. “Os soldados altos, loiros, de olhos azuis, passando de jipe com o bolso cheio de dólar pareciam os artistas de cinema”. E tomavam whisky. A admiração levou os nordestinos a substituírem o conhaque francês pelo novo destilado, que era símbolo de status. Assim começou um costume que mantém até hoje o Recife como a cidade que mais consome whisky no mundo.

Além disso, o Recife importou o cachorro quente, o hambúrguer e o sanduíche, que, apesar de não terem sido criados nos Estados Unidos, foram levados ao mundo através deste país.

Apesar dos exemplos concretos de alimentos e ingredientes incrementados nos hábitos dos recifenses, Toscano afirma que “a principal coisa que os norte-americanos deixaram foi a noção de fartura, de abundância alimentar” diferentemente de antes, quando o valorizado pela gastronomia francesa era a elegância. Essa fartura, conforme o pesquisador, acompanha uma ideia de riqueza. “É a imagem que os Estados Unidos tentaram projetar pro resto do mundo: poderio econômico calcado na alimentação”.

Toscano diz ver esse processo como algo natural, uma vez que a cultura é viva. Ele lembra, porém, que a dominação e a presença estrangeira sempre geram duas reações: é bem aceita por parte da população e negada por outra. Ainda segundo o pesquisador, “boa parte da elite, desde sua formação mais pregressa, valoriza o que vem de fora e nem tanto o que é nacional. Quer se mostrar como moderna, progressista”. Ao mesmo tempo, há resistência de outros setores, que julgam importante valorizar a própria história e cultura.

Na alimentação isso é ainda mais forte, pois “ela é intrínseca a um povo, as pessoas a defendem com fervor”. Toscano conclui dizendo que, por mais forte que seja a hegemonia cultural de uma nação, os hábitos nunca são reproduzidos de forma idêntica nos lugares onde chegam. Eles se adaptam aos outros países. No calor do Recife, por exemplo, pareceu uma boa ideia adicionar pedras de gelo de água de coco no whisky.

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