Ateliê de desenhos livres ajuda na recuperação de crianças vulneráveis

Desenho do “filhote do dragão da tia”. Foto: Arquivo pessoal | Erika Colombo.

Nem tudo que é expressado é verbalizado. Foi pensando nisso que a psicóloga clínica Erika Colombo desenvolveu uma pesquisa para examinar como desenhos de crianças de uma instituição de acolhimento em São Paulo poderiam traduzir experiências traumáticas. Em conjunto com o que elas tinham a dizer sobre as próprias ilustrações, o objetivo era de auxiliar no processo de acolhimento, além de recuperar individualidades por meio do ato e movimento criativo.

O Ateliê de Desenho de Livre-Expressão surgiu como um Projeto de Extensão enquanto Erika estava se graduando no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Durante um ano e meio, ela, junto a outros terapeutas, conduziu sessões em grupos de crianças de uma casa-abrigo, seguindo uma metodologia inspirada nos estudos de Michel Tornoy, psicólogo francês especializado em Psicopatologia. De acordo com Erika, “esse ateliê tinha uma estrutura de funcionamento bem específica: os desenhos eram sempre livres e os terapeutas desenhavam também, o que é algo que nem sempre acontece”.

As sessões eram divididas em dois momentos: o primeiro em que crianças e terapeutas desenhavam livremente, e o segundo, no qual havia uma discussão acerca dos desenhos produzidos. Parte fundamental do processo estava no que as crianças tinham a dizer sobre o que faziam: a interpretação dos desenhos não era arbitrária e baseada exclusivamente na visão dos terapeutas, mas embasada no que as crianças diziam sobre eles — ou o que não diziam, já que o silêncio também conta muito.

Erika conta que, em sua primeira sessão no Ateliê, desenhou um dragão que encantou dois irmãos, um de sete anos e outro de quatro, a ponto de pedirem para que fizesse um para eles. Como isso não faz parte da ética da Psicologia, os convenceu a desenhar os próprios dragões com base no dela. “No final, o irmão mais velho foi falar do desenho dele e disse ‘esse aqui é o filhote do dragão da tia, então a tia é minha mãe’. Um outro menino, de sete anos também, sentou no meu colo e falou ‘não, ela é minha mãe’ e eles começaram a brigar por isso”, disse. Foram cenas como essas que, apesar de não estarem necessariamente ligadas aos desenhos, permitiram que ela pudesse entender mais sobre aquelas crianças e as situações específicas que viviam.

Método

A psicóloga conta que procurava verificar se os desenhos poderiam exprimir fatos específicos das situações que as crianças viviam — de abuso, negligência, abandono, violência, repressão. O grande questionamento era: quanto que seria possível captar das histórias dessas crianças através dos desenhos? “Até porque cheguei a ter crianças de 3, 4 anos no ateliê. O que elas iriam verbalizar? Não tem nem como verbalizar sobre uma violência, um abuso, e é uma forma de comunicação diferente. E deu certo”, disse.

O Ateliê, em si, tinha como objetivo trazer acolhimento e cuidado para crianças em situações de vulnerabilidade, além de verificar se o método de Michel Tornoy, que inspirou a pesquisa com sua “oficina grafo-pictórica de livre expressão” aberta a grupos de pacientes psicóticos, se aplica a crianças: “A minha ideia era de pesquisar coisas que Tornoy não pesquisou. E essa era a pergunta: será que funciona com criança também?”.

A partir de verbalizações e grafismos, Erika traçou uma análise que mistura as vivências práticas acumuladas no Ateliê com uma reflexão teórica que embasou a pesquisa, estabelecendo diálogo com a análise fenômeno-estrutural de Eugene Minkowski e com conceitos da teoria de Donald Winnicott. O primeiro é empregado para analisar os desenhos propriamente ditos, levando em consideração formas, cores e aspectos, e o segundo, para reflexões acerca das vivências das crianças.

A análise fenômeno estrutural diz respeito à fenomenologia, e é um estudo de personalidades a partir de imagens dentro de um espectro de dois pólos: o sensorial e o racional.

O pólo sensorial se vincula a expressões. No caso de desenhos, são as imagens que estão sendo produzidas. Esse pólo em específico aparece mais no espectro quando as imagens produzidas se destacam no papel, seja pelo uso e intensidade de cores ou pela ligação que as figuras estabelecem entre si. “As pessoas mais sensoriais são mais afetivas. Elas se vinculam mais rápido e tem uma certa ‘adesividade’, como uma criança sentar no colo de uma pessoa que ela nunca viu. Normalmente as crianças estão mais nesse pólo afetivo”, explicou Erika.

O pólo racional é marcado pelo que Minkowski falou de “mecanismos de corte”, ou seja, da presença de aspectos mais frios, com poucas cores, e de desenhos mais desconexos e soltos. Existe um certo afastamento, tanto entre as ilustrações, quanto entre o desenho e o desenhista.

O processo de análise, dessa forma, combina o espectro formado por esses dois pólos e as verbalizações das crianças sobre os próprios desenhos ou dos colegas. Somado a isso, está também o estudo de Winnicott, que ajudou a investigar os comportamentos dos pacientes. Em seu livro Privação e Delinquência, o pediatra e psiquiatra inglês escreveu sobre o acolhimento de crianças que tiveram de ser retiradas das próprias famílias durante a Segunda Guerra Mundial, e se aprofundou sobre a questão de como cuidar de crianças que foram tão fragilizadas, privadas de cuidados familiares e que apresentavam comportamentos delinquentes, marcados por agressividade e por testar limites.

Erika conta de um dos meninos que participou de algumas sessões no Ateliê, o Walter (nome fictício): “Ele era um dos mais comprometidos em relação a isso. Tinha marcas de cigarro pelo corpo, e aí, quando ele tinha um machucado, ele ficava arrancando a casquinha, meio que se machucando de novo”. Segundo ela, era possível de se observar vários comportamentos mais característicos e que se enquadram na teoria de Winnicott.  

Resultados

A melhora no quadro psicomental das crianças foi logo percebido. De acordo com Erika, elas passaram a ficar mais desinibidas, menos agressivas e mais confortáveis em trazer informações sobre as próprias histórias: “Elas não falavam e, com o passar do tempo, passaram a trazer vivências que tinham com outras crianças e com as cuidadoras, e relatos das próprias experiências pessoais. Tudo isso de forma mais espontânea e natural”. Parte integral da terapia reside em compartilhar e se expressar, e o Ateliê dava abertura para tanto, seja por forma de desenhos, pelo mero contato ou ainda pelo poder de verbalizar situações que não foram bem digeridas.

Mas um Ateliê só não basta. Erika diz que, em especial no Brasil, é preciso de se pensar nas questões sociais envolvidas nas vivências dessas crianças abrigadas. Somado à problemática de não se priorizar a saúde mental e do excesso de burocratização para formar novos ateliês, as próprias crianças são negligenciadas: “O que mais vemos são crianças que entram no abrigo cedo e saem só com 18 anos. Que futuro elas vão ter? Quais os estigmas que elas carregam socialmente? Qual o lugar delas na sociedade? São muitas questões.”

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