Fluxo de conhecimento da academia às empresas ainda é incipiente no Brasil

Pesquisa explora estado da transferência de tecnologia no país e oferece ferramentas para melhorias

Existem cerca de 208 Núcleos de Inovação Tecnológica no Brasil hoje. Foto: Pixabay

Embora, no Brasil, exista um paradoxo entre a falta de investimento em pesquisas e as altas expectativas de retorno, uma coisa é clara: cada vez mais as universidades veem como um dos principais fins de suas atividades o desenvolvimento econômico e social da sociedade. A transferência de tecnologia, nesse sentido, assume um papel fundamental para garantir a aplicabilidade dos conhecimentos desenvolvidos. É desse aspecto que se ocupa a tese de doutorado de Thiago Soares — Três ensaios sobre a difusão do conhecimento da pesquisa acadêmica — desenvolvida na Escola de Engenharia de São Carlos.

O conceito de “universidade empreendedora” não é novo — suas raízes encontram-se no M.I.T. e remontam ao fim do século 19. No início do século seguinte, essa proposta foi ampliada por Stanford, no que ficou conhecida como a segunda revolução acadêmica. O seu intuito era de aproximar as missões das universidades às demandas das sociedades em que elas estavam inseridas. Nesse contexto, os escritórios de transferência de tecnologia (no Brasil denominados Núcleos de Inovação Tecnológica, ou NIT) seriam responsáveis por intermediar o contato entre aqueles que produzem conhecimento e desenvolvem novas tecnologias e aqueles que as absorvem — no caso, empresas e corporações.

Em um cenário ideal, ao fazer uma invenção, um cientista deveria contatar um NIT, e este, ao avaliar o seu potencial mercadológico, faria um pedido de proteção de propriedade intelectual e tentaria introduzir essa tecnologia no mercado. Segundo Soares, porém, isso nem sempre ocorre: “Embora, teoricamente, eles sejam obrigados a comunicar suas invenções, muitos cientistas não o fazem, porque acham que os escritórios não têm a competência ou capacidade suficiente para levar isso em frente”. Um outro fator que prejudica a comercialização de tecnologias é a mentalidade acadêmica tradicional, voltada a atividades de publicação.

Anatomia da tese

As pequenas variações e imprevisibilidades assumem um papel importante dentro da tese de Soares. Essa, dividida em três ensaios — o primeiro conduzido nos Estados Unidos, e os demais, no Brasil —, começa explorando o próprio princípio da transferência de tecnologia: afinal, os conhecimentos acadêmicos transpõem os limites das universidades, ou ficam confinados nelas, em uma espécie de torre de marfim? Aqui, Soares começa fazendo uma distinção importante: são considerados apenas os movimentos de “spillover”, ou seja, em que a tecnologia produzida na academia é absorvida pelo setor privado, pelas empresas. São excluídos, portanto, fluxos de conhecimento entre universidades, denominados “spill-ins”.

Como resultado, Soares observa que as empresas utilizam mais frequentemente invenções acadêmicas do que invenções de outras empresas como input em seus processos inovativos. Há, porém, uma variação, de acordo com o tipo de indústria que elas representam: no meio eletrônico, por exemplo, a lacuna entre uma e outra é expressiva; já nos meios químico e farmacêutico, ela é bem menor. Em ambos os casos, entretanto, elas são mais favoráveis à academia. Além disso, Soares encontrou, também, que os spillovers gerados pelas universidades apresentam maior alcance do que aqueles gerados por empresas, indicando que a contribuição de universidades para o desenvolvimento econômico não está confinada localmente.

No segundo ensaio, foi analisado como o capital humano dos NIT afeta os estágios iniciais e avançados da transferência de tecnologia — estes são representados, respectivamente, por comunicações de invenções aos NIT e pelo estabelecimento de contratos de licenciamento dessas tecnologias. Dentro dessa discussão, concluiu-se, por exemplo, que profissionais com doutorado afetam positivamente os estágios inicias do processo. Soares acredita que, por serem cognitivamente próximos a cientistas e pesquisadores, esses profissionais contribuem para facilitar a comunicação e diminuir as barreiras culturais entre os mundos acadêmico e industrial. Profissionais com MBA, por sua vez, exercem um impacto positivo tanto nos estágios primordiais quanto nos mais avançados. Esses achados sugerem que pessoas com formação em negócios, além de trazerem legitimação aos NIT como entidade comercial, aumentam suas habilidades de marketing e comercialização de tecnologias.

Por outro lado, os profissionais com experiência na indústria parecem exercer um impacto negativo no número de contratos de licenciamento assinados. Isso se deve ao fato de que, possivelmente, essas pessoas priorizam a rentabilidade dos licenciamentos em detrimento da quantidade de contratos assinados. Estudos subsequentes são necessários para confirmar essa suposição. Segundo Soares, esse é o primeiro estudo investigando a influência do capital humano de NIT nos diferentes estágios da transferência de tecnologia — assim, os resultados obtidos poderão auxiliar na montagem e desenvolvimento de futuras equipes dentro de NIT.

No terceiro ensaio, enfim, foi abordado como as regulamentações universitárias voltadas à transferência de tecnologia, a presença de incubadoras e de parques tecnológicos em universidades, e o desenvolvimento regional afetam as atividades de patenteamento e licenciamento de um NIT. Em relação às regulamentações, Soares concluiu que a mera existência delas não influi nas atividades supracitadas; o seu devido controle de qualidade, porém, pode aumentá-las significativamente. Ao contrário de suas expectativas, Soares encontrou, também, que a disponibilidade de incubadoras e parques tecnológicos não afeta as atividades de transferência do NIT — possivelmente, porque a difusão da tecnologia acadêmica para esses meios se dá por métodos alternativos.

Nesse contexto, porém, surge uma descoberta mais intrigante: as regiões de menor desenvolvimento econômico apresentam maior atividade de patenteamento (proteção de tecnologia), enquanto regiões mais desenvolvidas apresentam maior atividade de licenciamento (comercialização desta).

O que ocorre nos países em desenvolvimento

“Existem muitas universidades e escritórios, no Brasil, que têm por indicador de performance a quantidade de invenções que protegeram. Então, ao invés de se focarem justamente naquilo que vai gerar retorno para a universidade, eles estão se focando no começo do processo de transferência”, explica Soares. Segundo o pesquisador, uma vez que a quantidade de depósitos de patente é colocada em primeiro plano, a sua qualidade começa a se deteriorar. Assim, as universidades passam a gastar tempo e dinheiro com tecnologias que não têm potencial para entrarem no mercado.

Outro desafio na comercialização encontra-se na capacidade de absorção das empresas brasileiras. Em países desenvolvidos, as patentes acadêmicas representam uma pequena parcela do total — a maioria das patentes são, na verdade, derivadas das próprias empresas. No Brasil, é o oposto que ocorre. “Essas empresas do exterior têm mais facilidade para absorver o conhecimento gerado pelas universidades porque elas também fazem pesquisa. Mas, se a própria empresa não faz pesquisa, a capacidade que ela vai ter pra absorver pesquisa e desenvolvimento externo vai ser menor.”

Vale lembrar, porém, que a transferência de tecnologia é uma preocupação recente no país. Em 2004, a criação da Lei da Inovação Tecnológica buscou incentivar parcerias entre instituições acadêmicas e o setor produtivo brasileiro. Como resultado, entre 2006 e 2016, o Brasil apresentou um crescimento de 995% em número de Núcleos de Inovação Tecnológica em seu território.

Dessa forma, Soares conclui: “Pode ser que seja uma questão temporal, porque, para que você consiga comercializar, primeiro você precisa aprender a proteger. Existem pouquíssimos dados disponíveis para que a gente consiga estudar isso a fundo. Mas, sendo esse o caso, eu esperaria ver uma mudança ao longo dos próximos anos. É interessante que as universidades percebam que a comercialização das tecnologias em si (e não a sua proteção) é o principal resultado e que isso deve ser focado.”

Sobre o pesquisador

Em agosto deste ano, Soares fará uma apresentação, na Conferência Anual da Academy of Management, em Boston, a respeito do segundo ensaio de sua tese, intitulado TTO’s human capital and technology transfer outcomes: Examining technology transfer officers’ experience and educational background.

Na edição do ano passado, ele apresentou uma versão anterior do primeiro ensaio dessa mesma tese, na época intitulado Have Academic Patents been Overestimated? An Analysis of University and Industry Spillovers.

Thiago Soares é Doutor em Engenharia de Produção pela Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo. O foco principal de sua pesquisa é a difusão do conhecimento da academia para a indústria. Tem pesquisado, recentemente, o impacto do conhecimento gerado em universidades nas atividades inovativas do setor industrial e a comercialização de tecnologias produzidas na academia. É professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, onde leciona desde 2019.

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