Para especialista da USP, segurança não é monopólio estatal

Com discursos restritos apenas em como o Estado e sua força influenciam na segurança humana, o cidadão cede inconscientemente sua autonomia como voz ativa

Mesmo com a definição de segurança humana cada vez mais subjetiva e particular, a ajuda dos cidadãos é negada (Ilustração: Sofia Aguiar)

A segurança humana é atualmente muito reivindicada por governos e organizações para reformulações de direitos na política e no âmbito internacional. Apesar da falta de precisão para saber quando tal conceito surgiu, o espaço que ele ganhou em discussões políticas e acadêmicas é recente. É sobre isso que trata a tese de doutorado Segurança humana: histórico, conceito e utilização, de Raquel Rocha.

A tese é dividida em três artigos que demonstram pontos de vista histórico, conceitual e como ferramenta de política externa. Raquel evidencia um baixo nível de debate entre a agenda de desenvolvimento e segurança no estudo dessa área, em que a importância do indivíduo nesse debate não é substituída pela presença estatal. A tese ainda trata para quais interesses a segurança humana é abordada, em uma análise comparativa entre Japão e Canadá.

Cidadania

Em 1994, o conceito de segurança humana foi cunhado pela ONU no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que traz a questão como algo centrado no ser humano, distanciando de anteriormente centrado no Estado. Pautada no bem-estar do povo, ela é dividida em sete pilares (econômica, alimentar, saúde, ambiental, cidadã, comunitária e política) e referindo-se aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da agenda 2030 da ONU.

Raquel comenta que, desde o início da discussão, o tema era compreendido muito envolta ao poder do Estado, em que qualquer ameaça à segurança é posta a ele como ponto de partida. “Sempre discutimos segurança internacional com tipo de ameaça territorial ou ameaça ao espaço aéreo. Fica muito focado no uso da força”, como uma questão de soberania levantada como preocupação do governo. Mas a maior parte da população pode se sentir ameaçada por outros motivos daqueles anteriormente estabelecidos. A discussão sobre segurança humana e o enfoque dado é feito por “uma distinção de qual é o ponto de partida. É sobre quem está sendo a pessoa ou instituição a avaliar as ameaças, como um lugar de fala.”

A crítica pela fascinação e repetição de que o Estado vai ser o único a garantir a segurança do indivíduo tira a autonomia do cidadão, que praticamente cede um pedaço de sua liberdade e legitimidade para que o Estado provenha suas necessidades básicas. O maior problema é que o próprio cidadão não compreende que precisa ou não tem condições para prover qualquer tipo de serviço para a sociedade, como educação e saúde. 

Segundo Raquel, “o Estado precisa ser robusto, compreensivo e democrático para que ele consiga prover essas necessidades”. Mas, caso a segurança fique apenas à mercê da ação cidadã, é “quase um argumento de que o cidadão é maior do que o Estado, de que ele pode ter autonomia própria para correr atrás de suas necessidades. Para qualquer pessoa vivendo dentro de um país, ela depende minimamente do poder do Estado”. A análise de sua tese diz que a segurança humana é baseada em tirar essa exclusividade estatal e fazer com os cidadãos sejam ouvidos, mas não negar a participação desse.

Estudo de casos

Raquel traz um desenvolvimento de comparação entre a segurança humana nos modelos do Japão e Canadá, países com tipos de governo e história bem diferentes. Em sua tese, ela concluiu que o Japão refere-se a um modelo nacional mais voltado à segurança humana, em que a promoção e o investimento nesse conceito é algo sempre presente. Já o Canadá refere a uma segurança humana mais tradicional. Isso significa que o país atende a interesses específicos de política doméstica e internacional dentro apenas de determinado período, e depois essa postura deixa de existir. Quando necessária, essa conduta volta, mas sempre sob uma perspectiva de inconstância. 

Comparação entre motivações e definição, respectivamente, do Canadá e Japão. (Ilustração: Sofia Aguiar)

“Na análise de estudo de caso, o Japão é um dos Estados que chega o mais perto possível da ideia de segurança humana, mas, ao mesmo tempo, existem interesses políticos e até uma agenda de ganho econômico que é muito clara”. A cultura milenar e enraizada do país facilita com que a ideia de segurança humana ultrapasse apenas a ação do Estado, e chegue aos indivíduos pela ideia de coletividade, cooperação e auxílio à governabilidade. Essa postura faz com que o país se estabeleça como potência média e, consequentemente, ganha destaque no cenário internacional. 

Apesar da rigidez dos costumes japoneses, não há uma restrição da liberdade de expressão. “Eles são muito restritos em educação e no que eles julgam correto. Mas todos estão em conjunto contribuindo pelo coletivo. Eles têm uma cultura que é anterior, rígida e passada de geração para geração, mas de forma alguma é uma restrição de liberdades ou algo parecido.”

Brasil

Raquel aponta que a segurança no Brasil é muito subjetiva. Por sua extensão territorial, as impressões dos indivíduos sobre problemas de segurança humana variam de acordo com a região. “Vincula muito à ideia do que é espaço público e do que o Estado deve ou não prover” e, devido às desigualdades econômicas e regionais, a segurança humana no Brasil é ambígua. 

Ao comparar o país ao Japão e Canadá, Raquel diz que o Brasil já teve períodos mais próximos ao Canadá, principalmente na época do governo Lula, com grande estímulo a leis de paz com o objetivo de o país ter um assento no Conselho de Segurança da ONU. Mas, atualmente, acredita que ele não se adequa a nenhum dos países. 

Ela entende que, atualmente, “o Brasil não seria Canadá nem Japão pois não tem segurança humana, só segurança tradicional”. O país exerce apenas uma “preocupação com a soberania, algo bem antigo nas relações internacionais, com pouco diálogo com o exterior”.

Com a intensificação de relações bilaterais, o Brasil se sustenta com um pequeno espaço de relações internacionais em sua agenda. De 2010 a 2015, o discurso de favorecimento de segurança humana se esvazia. Tal vácuo é ampliado com a mudança de governos com visões mais conservadoras.

Em uma retroalimentação, o cenário internacional reflete a política doméstica dos Estados, e vice-versa. A única forma de alterar um Estado de segurança humana em conjunto aos indivíduos é, segundo Raquel, a partir da ideia de mobilização. “A própria ideia de criação de coletivos nada mais é do que uma prática de segurança humana, pois são pessoas que têm minimamente interesses comuns e, através dessa ação coletiva, vão batalhar a favor de um objeto”. E, assim, “as próprias ações vão refletir em decorrência da causa”. 

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*