Potes de barro desafiam tempo, mercado e colonialismo no sertão

Pesquisa explora a relação complexa entre utensílios domésticos e habitantes da região

Processo de manufatura do barro é feito pelas loiceiras. Foto: Pexels

Por que apesar de todo esforço produzindo louças de barro pratos, panelas, chaleiras, copos, bacias, tigelas as loiceiras não utilizavam nenhum daqueles itens? E por que os potes, ao contrário, permaneciam em suas cozinhas armazenando água, mesmo com a presença de geladeiras? Foram esses questionamentos que, durante uma viagem ao sertão pernambucano, impulsionaram a tese de doutorado da pesquisadora Daniella Magri Amaral, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

Primeiro, uma breve explicação. “Louça (ou loiça) de barro” é como a população sertaneja denomina a cerâmica de produção tradicional. “Loiceiras” (a maioria mulheres) são as detentoras do conhecimento desse tipo de manufatura. Já “pote” designa genericamente as vasilhas utilizadas no armazenamento de água.

A tese concluiu que, enquanto a louça de barro foi desaparecendo por questões de conveniência e de mercado, a permanência dos potes se deu graças à sua relação íntima com o modo de vida em áreas que convivem com seca prolongada, como o sertão e o agreste pernambucano. 

Resistência, memória e sociabilidade

Potes são veículos centrais da sociabilidade sertaneja, conectando o meio semiárido aos seus habitantes. Eles exercem papel importante nas relações com o meio e com os demais indivíduos graças ao seu potencial para armazenamento e transporte de água em tempos de escassez. Segundo a pesquisadora, essa materialidade histórica criou uma relação de memória afetiva em relação a esses utensílios, ponto chave para o questionamento inicial de sua tese. 

“Durante as entrevistas (com as loiceiras) sempre vinha a questão de o pote estar na família há muito tempo, de ser mais gostoso, de a água ficar mais fresquinha. Então existe uma questão afetiva envolvida e de memória daquilo que é o ser sertanejo”, reconta Amaral. De acordo com suas observações, as memórias despertariam nas loiceiras e nos demais habitantes um prazer pelo sabor do barro e pela frescura da água armazenada, proporcionando a quem viveu secas cruciantes ao longo do tempo, bem-estar e sensação de segurança.

Além disso, a presença dos potes manifesta-se como resistência à desvalorização das populações sertanejas e suas tradições. Muitos preconceitos iniciados na colonização nordestina perduram até hoje, criando uma associação negativa entre louça de barro e miséria, rusticidade e sujeira. 

Assim, a escolha deliberada pelo uso dos artefatos, mesmo em detrimento de formas industrializadas, revela uma oposição à estética colonialista e ao capitalismo global, que invade as comunidades com produtos homogeneizados e destituídos de traços locais. “Bacias e copos foram sendo substituídos pelo plástico e pelo vidro, mas os potes permaneceram. Por isso são um elemento de resistência. Eles poderiam ser trocados por um similar que fosse à geladeira, mas não são.”

Iconografia e literatura

Para corroborar a continuidade histórica dos potes no modo de vida sertanejo, incluindo sua produção, comercialização e uso ao longo do tempo, Amaral utilizou documentação primária textual e iconográfica, textos de literatura regional e de cordel. Abaixo, alguns exemplos desse trabalho.

Xilogravura de J. Borges, Mulheres do Sertão

Para corroborar a continuidade histórica dos potes no modo de vida sertanejo, incluindo sua produção, comercialização e uso ao longo do tempo, Amaral utilizou documentação primária textual e iconográfica, textos de literatura regional e de cordel. Abaixo, alguns exemplos desse trabalho.

 Excerto de Fogo Morto, de José Lins do Rego

Esse trecho de “Fogo Morto”, de José Lins do Rego, publicado em 1943, é um dos vários exemplos na literatura local onde a mulher aparece encarregada de buscar água, utilizando potes sobre a cabeça.

Comercialização de louça de barro na feira. Foto: Acervo FUNDAJ

Nessa foto de autoria e localização desconhecidas, datada entre 1955 e 1975, vemos a comercialização de louças de barro na feira, com presença feminina marcante. (Setas vermelhas feitas pela pesquisadora).

Arqueologia e ativismo

Durante sua pesquisa, Amaral presenciou setores do governo e da elite local desqualificarem a louça de barro e seu processo de manufatura.“Rústica”, “grosseira”, “mal-acabada” e “feia” são algumas das definições utilizadas para desmerecer as cerâmicas. Essa visão alinhada ao colonialismo e ao abandono da materialidade local, todavia, não se restringe a esses setores. Segundo a pesquisadora, a academia também carrega esse viés.

“A prática arqueológica no País, muitas vezes, não consegue identificar pequenos sítios sertanejos como sendo sítios arqueológicos. Registram como pequenas ocorrências, ou não registram”. Para ela, a arqueologia deve ser compreendida além da cultura material do passado, envolvendo ação política e ativismo. O interesse das comunidades deve coexistir com os interesses acadêmicos. 

“O mundo ideal seria essas pessoas possuírem incentivo governamental para continuarem produzindo cerâmica e que isso tivesse retorno financeiro para elas. Mas não há valoração econômica nem estética desses itens”, revela. 

Atualmente, o desaparecimento dos conhecimentos tradicionais das loiceiras é iminente, devido ao desinteresse dos jovens em aprender as técnicas de manufatura. E apesar de indicar um aumento no poder de consumo dos moradores do agreste nordestino, a baixa demanda pelos produtos de barro pode representar o fim de um patrimônio cultural imaterial, o “saber fazer” das louças. “Se não houver auxílio, vai morrer com elas.”

Loiceiras e suas cerâmicas (da esquerda para direita: Dona Rosinha, Dona Edite e Dona Inácia). Fotos: Daniella Amaral

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