Mudança climática faz sertão encarar fundo do poço

Chuvas diminuem com aumento de temperatura e incentivam consumo de águas subterrâneas na agricultura

Fonte: Fundação Banco do Brasil

A exportação de gêneros alimentícios cresce no Brasil; a fronteira agrícola não só avança, como muda de perfil. A agricultura irrigada substitui as plantações dependentes do regime de chuvas e a pecuária abre novos pastos onde havia seca. Essa é a realidade indicada pelo censo agropecuário de 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em comparação a 2006, o número de poços tubulares (com profundidade suficiente para alcançar aquíferos confinados, como o Guarani) associados a estabelecimentos rurais cresceu acima da média nacional nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte — onde registrou aumento de 720%. Esses são dados levantados pela pesquisa de Osvaldo Aly Júnior, do Instituto de Geociências (IGc) da USP e professor de pós-graduação na Uniara.

O intuito inicial de Aly Júnior era analisar a política de controle de águas subterrâneas usadas na agricultura brasileira. Porém, se deparou com um problema. Não havia informações registradas. Partiu, então, da questão: “é possível levantar dados confiáveis sobre o assunto?”

Programa do governo federal incentiva incentiva uso de águas subterrâneas no nordeste, Fonte: Wikimedia Commons

Ele cruzou bases do censo agropecuário de 2006 e 2017, do Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (Siagas) e da Agência Nacional de Águas (ANA), mas de novo encontrou um desafio. O levantamento do IBGE pergunta se há poços tubulares na propriedade rural e não quantos são.

Como artifício, o pesquisador do IGc considerou que cada estabelecimento agrícola que afirmou ter poço artesiano contava com apenas uma unidade; uma estimativa conservadora. Apesar da cautela em sua hipótese, o número de estruturas do tipo cresceu 315% no País, ainda que a quantidade de propriedades tenha caído.

Em um primeiro olhar, as estatísticas apresentam apenas avanços. Só que a pesquisa tem uma segunda faceta. Os efeitos das mudanças climáticas sobre a segurança hídrica.

Tragédia sertaneja em um problema global

O orientador de Aly Júnior, Ricardo Hirata, aponta em estudo de 2012 que os aquíferos das regiões Nordeste e leste da Amazônia serão os mais afetados pela queda da taxa de precipitação decorrente das mudanças climáticas, com redução de sua recarga em até 70%.

Embora os aquíferos sejam reservas subterrâneas, dependem das chuvas para manter seu volume. Isso gera outro problema. Nos períodos de seca, são as águas represadas nas rochas que abastecem os rios. No caso da Bacia do São Francisco, essa contribuição chega a 90% da vazão entre agosto e outubro, segundo dados da ANA.

Ciclo hidrológico da água, que também se infiltra no solo depois de chuvas. Fonte: Cetesb

Por outro lado, o professor da Uniara afirma que em tempos de estiagem a água subterrânea ainda é a solução. Pesquisa da mesma Agência Nacional de Águas, indica que “com o aumento de temperatura causado pelas mudanças climáticas, a taxa de evaporação das águas superficiais no semiárido seria superior à demanda da produção agrícola da região”, conta Aly Júnior. Em vista disso, as represas construídas por grandes empreiteiras seriam ineficientes.

Como apontado, o número de poços tubulares e comuns cresce no sertão nordestino e na Amazônia. A questão é a irregularidade. A grande maioria das obras não é registrada, porque a permissão estatal para escavar é muito cara. “Aqui no Sudeste, na região fora do aquífero Guarani, custa entre 20 e 30 mil reais para fazer um poço. Disso, 10 mil reais vão na outorga”, informa o pesquisador.

Por isso, o pequeno produtor muitas vezes procura outros meios. Aly Júnior propõe que o governo disponibilize financiamentos que incluam o gasto burocrático, e deste modo, documente o uso de água subterrânea.

Um registro completo do consumo de fontes subterrâneas (nascentes, poços comuns e tubulares) permitiria a criação de uma regulação eficiente. Fora isso, é necessário um cálculo do fluxo de água possível de explorar sem que haja esgotamento dos aquíferos, segundo o professor da Uniara.

Lições sobre o uso de águas subterrâneas

Na sua tese, Aly Júnior traz um exemplo do que não fazer. Com grande parte de seu território tomado por deserto, “a Califórnia detém metade da produção dos Estados Unidos de legumes, frutas e amêndoas”, assinala ele. Isso é possível com técnicas produtivas e tecnologia de irrigação.

O contratempo surgiu quando as laranjeiras do oeste norte-americano estavam carregadas e as cidades sem abastecimento de água. Lá, o uso dos recursos hídricos era definido em reuniões entre os grandes usuários, produtores agrícolas, e os gestores públicos. 

A sociedade ficou de fora até o episódio conhecido como Guerras da Água na Califórnia, retratado no filme Chinatown de Roman Polanski, quando entidades civis levaram a cidade de Los Angeles à justiça. Contrariando determinações legais, a administração local continua bombeando águas subterrâneas e no longo prazo a região conhecida como Owens Valley se tornará um deserto.

No Brasil, entretanto, há exemplos positivos. O “um milhão de cisternas”, programa que começou na sociedade civil e foi oficializado em 2003 pelo governo Lula, entregou 1,06 milhão de cisternas. Aly Júnior descreve essa política pública, elogiando seu foco na segurança hídrica e alimentar da sensível região do semiárido. 

Gráfico de Pedro Teixeira

O especialista também chama atenção ao Programa Água Doce (PAD). O PAD seleciona localidades com base no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), taxas de pobreza, mortalidade infantil e um último critério de disponibilidade de água na região.

Nos locais selecionados, o programa não perfura novos poços, mas os reabilita, na medida em que promove dessalinização de águas salobras. O clima seco da região e os ventos marítimos ocasionam na alta concentração de água nas reservas do semiárido, explica o professor. “O PAD é interessante, pois trata-se de uma iniciativa descentralizada. O governo federal age por meio dos estados e municípios”, alega.

Ele, ainda assim, faz uma ressalva. As reservas superficiais são regidas pelo Código de Águas de 1934, uma lei federal. Diferente, a regulação dos recursos hídricos subterrâneos é de responsabilidade dos estados. Além disso, o crescimento da quantidade de poços artesianos é patrocinado pela iniciativa privada.

“Sem uma participação crítica da população, pode se repetir o que aconteceu durante a crise hídrica em São Paulo”, alerta o pesquisador. Ao passo que a água não chegava às residências paulistas, o governador Geraldo Alckmin negava o problema. “A Sabesp tinha contratos fechados ao público nos quais o maior consumo ocasionava maiores preços. Logo, o lucro subia e o consumo nada tinha a ver com sustentabilidade”, lembra.

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