Acolhimento na fila de espera orienta pais de crianças autistas

Programa de orientação foi estruturado conforme a realidade das famílias e trouxe melhorias

Interatividade entre pais e filhos mudou após as sessões de orientação. (Foto: Pixabay)

O drama da espera por atendimento na rede pública de saúde é vivenciado por milhões de brasileiros e pode gerar diversas complicações aos que lutam contra o tempo.

No caso, por exemplo, de crianças autistas de até seis anos, o estímulo à primeira infância é precioso, já que é um período de pleno desenvolvimento.

O contato de longa data com esses pequenos e com o atendimento público, despertou em Vanessa Mayumi Sugawara, fonoaudióloga e recém-mestre da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP), a vontade de desenvolver uma pesquisa para famílias que se encontram nessa situação.

Instruções práticas

A especialista baseou o seu programa de orientações no que já era aplicado no atendimento do Laboratório de Investigação Fonoaudiológica nos Distúrbios do Espectro do Autismo (LIF-DEA) da FM/USP. Por lá, a funcionalidade da comunicação é trabalhada em crianças que apresentam o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

“Fui estudar sobre como poderia organizar tudo isso, porque precisava ser um programa breve, já que são só dois anos de mestrado. Era necessário conseguir os pacientes para pesquisa, aplicar o programa, ter tempo de analisar tudo e de, eventualmente, reformular algo”, revela a mestre.

No total, foram quatro semanas orientando pais de crianças autistas, sendo cada sessão mais específica do que a anterior. A primeira foi uma inserção, em que a família tomou consciência sobre como é e como funciona a comunicação no universo autista. Na edição seguinte, a pesquisadora passava a abordar como o paciente poderia se comunicar, podendo ser através da fala, de gestos e de vocalizações. Ao ser identificado o meio, a fonoaudióloga e os pais buscavam alternativas para acolhê-lo e estimulá-lo em casa.

Durante o penúltimo encontro, foi trabalhado o espaço comunicativo. “Algo muito característico das pessoas com TEA é o isolamento ou a dificuldade de percepção do outro. Assim, uma criança que ocupa muito espaço não deixa o adulto falar. Como eu já conhecia um pouco as famílias, fui orientando no sentido de que não se pode ocupar todo o espaço comunicativo, senão, o paciente não terá uma abertura para tentar se comunicar, mesmo com as dificuldades que ele possui”, esclarece Sugawara.

Na quarta e última sessão, era revelada a importância das brincadeiras. De acordo com a especialista, a ação está atrelada ao desenvolvimento cognitivo e ao da linguagem. Nesse processo, foram levados em conta alguns impedimentos, como o fato do pequeno não se interessar por nenhum brinquedo ou a falta de tempo da família. “Em parceria com os pais, construímos as estratégias que eles iriam usar em casa, pensando no que a criança mais gostava, nos focos de interesse, na dinâmica daquela família e no que ela conseguiria fazer.”

Para a mestre, era importante construir essa rotina de estimulações em parceria com a família do paciente. “Não adiantaria apresentar uma orientação fechada, em que os pais precisariam se adaptar a isso, sendo que alguns não iriam conseguir. […] A ideia do programa era não só trazê-los para essa conversa e orientação, mas que eles pudessem incorporar tudo isso no cotidiano para estimular as crianças”. Ao final do acompanhamento, os responsáveis levavam uma cartilha com todas as estratégias discutidas para serem usadas em casa.

Após dois meses, a família retornava para uma reavaliação, a qual era comparada com a avaliação feita na primeira sessão do programa.

Perfil das famílias

No total, 12 famílias participaram da pesquisa. Ao longo do programa, Sugawara identificou que a figura materna prevalecia em todas as sessões. Em apenas dois casos, o pai ou o padrasto acompanharam as mães nessa jornada.  “Quando a gente vai um pouco mais fundo na literatura, percebe-se que isso tem um impacto, principalmente nos casos de crianças com autismo, em que as mães tendem a ter uma sobrecarga maior e, com isso, um nível de estresse superior ao dos pais.”

Com base no protocolo, na avaliação e nos questionários aplicados, outro ponto identificado foi o hábito de leitura. Semanalmente, as famílias costumavam ler o equivalente ou mais do que a quantidade habitual para as crianças. No entanto, logo na avaliação inicial, a pesquisadora constatou que muitas não conversavam com os filhos que não falavam. Ao ressaltar a importância de se dialogar, independentemente disso, ela recomendava que os pais falassem pausadamente, na altura do paciente, com frases curtas e objetivas, visando garantir a atenção do pequeno.

Uma outra forma de estímulo para a comunicação era desenvolver essa necessidade. Para isso, cabia à família mudar de lugar ou dificultar o acesso a itens que ficavam ao alcance da criança, como a mamadeira ou algum brinquedo. Assim, uma vez desejando o objeto, ela precisaria se comunicar de alguma forma para tê-lo em mãos.

De acordo com especialista, as orientações devem ocorrer antes e durante o tratamento formal. (Foto: Marcos Santos – USP Imagens)

Mais estudo, mais acolhimento

A fonoaudióloga aponta que a falta de bibliografia sobre o assunto foi um desafio. “Os estudos são escassos sobre orientações para crianças autistas que estão na fila de espera de um serviço público. Para se ter ideia, o primeiro artigo nacional, dentro da área de fonoaudiologia, saiu somente neste ano.” 

Por outro lado, Sugawara espera que o seu trabalho chame a atenção para essa problemática. “Gostaria que os pesquisadores e estudantes pudessem realmente começar a olhar para tudo isso com mais atenção. Tudo bem que as filas de espera não são apenas uma questão da quantidade de profissionais, envolvem diversas outras áreas, inclusive políticas, mas que se possa voltar um pouco mais a atenção para a necessidade de programas de orientações e até de estudos que ajudem a suprir essa necessidade da população.” 

Na visão dela, o acolhimento é fundamental para as famílias que vivenciam o sentimento de descaso na rede pública de saúde. Como exemplo, a fonoaudióloga cita a própria pesquisa, apesar de pontuar que a quantidade em termos estatísticos é insuficiente, diante da pluralidade de perfis com TEA. No caso, ao longo das sessões, ela percebeu a mudança na postura dos pais em relação às dificuldades dos filhos. Eles passaram a se comunicar com o filho, independentemente, se a criança respondesse ou não. O diálogo passou a ser parte da rotina dessas famílias. 

O programa não descarta a necessidade da terapia, porém a participação dos pais é fundamental. “Isso é realmente muito importante, porque eles precisam estar muito engajados no processo terapêutico do paciente, não só enquanto eles esperam, mas por um longo período, para que se consiga deixar as crianças mais estimuladas até elas começarem o acompanhamento formal.”

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