Estudo investiga a origem da dispensabilidade de machos em espécies de lagartos

A pesquisa aponta a ocorrência de origem antiga de reprodução assexuada desses animais na Amazônia

(Imagem: Fernando Castro)

Diferente do que está estagnado no senso comum, não são todos os processos de reprodução que necessariamente envolvem seres dos gêneros masculino e feminino ou que contêm atividade sexual. Existem casos na natureza que fogem dessa convenção, e exemplificam como o processo de reprodução das espécies é vasto e variável.

Em seu pós-doutorado, Tuliana Brunes, pesquisadora do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da USP (IB), analisou como ocorreu a origem dos lagartos do complexo Loxopholis Percarinatum, endêmicos da região amazônica. No caso desta espécie, as fêmeas possuem um método de auto reprodução, ou seja, conseguem gerar ovos sem a necessidade de um parceiro ou relação sexual. Assim, os machos, que não existem no caso dessa espécie, acabam por perder sua relevância nesse processo. Além disso, esse complexo é formado por duas linhagens diferentes, uma diploide como a maior parte dos vertebrados e uma triploide, mais exclusiva no qual o aumento no nível da ploidia pode conferir um maior potencial adaptativo para esses organismos.

Com a supervisão do professor Miguel Rodrigues, titular do IB, e grande colaboração da professora Katia Pellegrino, docente da Unifesp do campus Diadema, que atua como co-supervisora deste trabalho, Tuliana desenvolveu um projeto com essas espécies de lagartos assexuados para estudar a origem e a manutenção das mesmas na natureza através a sua história genealógica (relação evolutiva entre grupos de organismo), ou seja, analisando a filogenia (histórico familiar de ser) desses répteis.

Diferencial dos Loxopholis percarinatum para outras espécies

Tuliana explica que “diferentemente da maioria dos lagartos que existem no mundo todo, essa espécie é assexuada. Sendo assim, reproduzem-se sem relação sexual, e também, sem nenhum tipo contato com machos”. Esse processo, em que um óvulo sem fecundação consegue desenvolver-se e dar origem a um ser vivo, é chamado de partenogênese verdadeira. 

Nessa ocorrência, as fêmeas da espécie dão à luz a clones delas mesmas. O embrião começa se dividir sem qualquer contato com gametas de machos. Dessa forma, não há uma mistura dos genes e os descendentes são caracterizados por ter uma semelhança muito parecida com a fêmea progenitora. Apenas cerca de 0,7% das espécies catalogadas de lagartos no mundo compartilham essa característica de serem partenogenéticas assexuadas como as espécies do complexo Loxopholis percarinatum.

A particularidade e o fato desses lagartos estarem restritos à região da Amazônia aumenta o interesse de pesquisa sobre suas especificidades. O estudo de Tuliana busca, como principal objeto de estudo, compreender quando e como se deu o processo de origem dessas espécies.

A pesquisadora salienta duas hipóteses que podem explicar como os organismos trilharam sua trajetória para chegar a essa situação de reprodução. ”Esse processo pode ter ocorrido de forma espontânea, uma vez que no cruzamento de dois seres sexuados da mesma espécie, podem ter acontecido mutações nos genes envolvidos na produção das formas sexuais seguido de uma meiose bem-sucedida. A hibridação inespecífica na reprodução, gerando fêmeas partenogenéticas”, explica Tuliana.

“Por outro lado, esse processo pode ter ocorrido através de hibridização interespecífica, na qual duas espécies diferentes se cruzam e ocorre uma interrupção na meiose criando a oportunidade para a seleção de processos citológicos que resgatam a produção de ovos. Portanto, nos dois casos, observa-se que só existem populações de fêmeas dessas espécies”, complementa a pesquisadora.

Longevidade de reprodução da espécie 

Os resultados recentes encontrados por Tuliana e seus supervisores, publicados na revista internacional Molecular Phylogentics and Evolution, indicam que os lagartos do complexo Loxopholis percarinatum são as espécies partenogenéticas de lagartos mais antigas que existem no mundo de acordo com a literatura disponível até o momento. Esses répteis assexuados teriam sido originados no período do Mioceno, há cerca de 7 milhões de anos atrás, enquanto outras espécies de lagartos partenogenéticos teriam se originado no Pleistoceno, há cerca de 200 – 70 mil anos atrás, como no caso dos lagartos assexuados do gênero Darevskia, endêmicos da região do Cáucaso.

Esse resultado abre uma discussão muito interessante sobre a persistência dessas espécies perante a passagem do tempo. Uma vez que esses animais não cruzam, não há um embaralhamento genético que o sexo proporciona nas gerações descendentes e imaginava-se, no início das pesquisas sobre esse tema, que essas espécies seriam facilmente extintas na natureza. Porém, esse não parece ser o caso desses lagartos. Esse paradigma pode estar sendo quebrado com a constatação de que esses répteis amazônicos são originários de um período muito mais antigo do que o esperado, e além disso, estão surgindo hipóteses que possam explicar a sobrevivência da espécie.

A pesquisadora sustenta essa crescente ideia apresentando que “por não ser a única espécie partenogenética de lagartos na Amazônia, alguma função do ambiente pode proporcionar a origem e o estabelecimento dessa espécies ao longo do tempo no bioma. A estabilidade da presença do bioma amazônico ao longo de milhões de anos pode explicar esse resultado inédito encontrado”.

Possibilidade de existência de machos nessa espécie e sua origem

Outras descobertas da pesquisa de Tuliana com auxílio de seus supervisores abordaram a possibilidade da existência de alguns machos raros dessa espécie encontrados na região do médio Rio Negro. Esta possibilidade foi levantada por um dos colaboradores do grupo da pós-doutoranda em 2015. O Dr. Sérgio Marques-Souza, que também é pós-doutorando do Departamento de Zoologia do IB, realizou uma investigação morfológica em lagartos machos que pareciam pertencer ao complexo L. percarinatum, Tuliana tratou de verificar se também existiam semelhanças ao nível genético.

Apesar de em um primeiro momento parecer que esses animais eram seres semelhantes, a pós-doutoranda descobriu através de uma filogenia baseada em um gene mitocondrial que os machos na verdade pertencem a outra espécie que não se conhecia. Ao mesmo tempo, constatou-se que aqueles animais eram lagartos que também conviviam com fêmeas da sua própria espécie, que por sua vez não eram partenogenéticas. Além disso, as constatações de proximidade morfológica e genética indicam que essa nova espécie bissexuada encontrada provavelmente faz parte da linha de ancestralidade do complexo L. percarinatum. Sendo assim, possivelmente, essa espécie que contém machos e fêmeas é ancestral da espécie materna que deu origem a esses lagartos partenogenéticos.

Por fim, os resultados encontrados ao nível do DNA nuclear revelaram que Loxopholis ferreirai, uma espécie endêmica da região do Rio Negro, possivelmente, é a espécie ancestral paterna do complexo L. percarinatum. Deste modo, concluiu-se que a origem desses lagartos partenogenéticos se deu através de um processo de hibridização. Neste momento, a pós-doutoranda tem explorado a origem dessas espécies dentro do contexto geográfico para tentar descobrir em qual região da Amazônia esse processo de hibridização poderá ter ocorrido.

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