Malandragem feminina existe há décadas em canções brasileiras

Pesquisa do Instituto de Estudos Brasileiros identificou a presença da personagem em composições de samba e funk

[Imagem: Oscar Keys/Unsplash]

Na cultura nacional, a figura do malandro faz parte do imaginário popular. O sambista de terno branco, chapéu e violão nas costas está presente em letras de músicas, livros, peças de teatro e artigos acadêmicos, sempre associado à boemia e esperteza. Já a ideia de uma malandra não é referência imediata. Foi isso que se dedicou a estudar a mestranda Aniele Avila. “Do samba ao funk: a malandragem feminina nas letras de canções da música contemporânea do Brasil” é o resultado da pesquisa que realizou no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

“São mulheres que se colocam contra uma moralidade, contra um padrão de comportamento”, é como Aniele define as malandras. Ela completa dizendo que “esse lugar social é um lugar de rebeldia e indisciplina. É uma figura bastante indisciplinada se a gente pensar nesses padrões morais”. Para encontrar e caracterizar a malandragem feminina, a pesquisadora estudou três períodos: os anos 30 e 40, a partir do samba; os anos 70 e 80, analisando a MPB, e a primeira década dos anos 2000, olhando para o funk. 

Em todos os momentos, as composições são, predominantemente, masculinas. Isso quer dizer que a malandra nasce na música a partir do registro do homem. É ele quem a qualifica como uma mulher livre, poderosa, rebelde e sem pudores. Em muitos aspectos, bastante similar ao que representa o malandro, principalmente no que diz respeito à vida boêmia.

Pela rua virando lata, Eu sou mais eu mais gata

Pensar em mulheres que reivindicam seu direito à liberdade nos leva, quase imediatamente, ao movimento feminista. Em seu trabalho, Aniele expressou a associação de modo direto. Mas, em entrevista, ela ressaltou a importância de ser cuidadoso ao fazer as possíveis identificações. 

A primeira ressalva se deve ao fato de que as personagens eram representadas por autores homens. Sua caracterização nas letras de modo algum deve ser entendida como um retrato fiel da realidade. Há ainda o fato de que em nenhum momento as letras assumem, plenamente, um envolvimento teórico com essa linha de pensamento. “Mas é curioso que a mulher, por exemplo nos anos 30 e 40, seja colocada na malandragem. Porque a gente sabe que aquela era uma sociedade com raízes mais machistas, mais patriarcais e a mulher, de fato, está ali naquele ambiente tão boêmio quanto o homem e ela representa justamente o comecinho de feminismo”, reflete Aniele.

Chegando na década passada, as letras continuam sugerindo uma mulher de espírito livre. Apesar de as referências sexuais serem mais explícitas no funk, “é interessante também que isso tenha que se repetir, que a mulher tenha que se colocar nesse lugar de contravenção mesmo depois de tanta coisa ter mudado”, destaca a pesquisadora. Para esta fase da dissertação, Aniele estudou as letras cantadas por Valesca Popozuda, Tati Quebra-Barraco e Ludmilla.

“Quando digo, sugiro, que as malandras representam um comportamento mais feminista, não significa que os compositores ou que os cantores são feministas, mas que aquelas personagens estão dialogando com essa corrente filosófica, ideológica. Talvez sem intenção, talvez propositadamente”, conclui Aniele.

Mas, na outra encarnação, Eu vou voltar mulher: Dormir cedo, acordar tarde

Na narrativa dos malandros, o trabalho é uma questão central. Esse personagem é constantemente retratado como preguiçoso: aquele que não gosta de trabalhar e que “enrola” o patrão. “No caso da mulher, na minha pesquisa, o trabalho realmente não apareceu de forma acentuada. O que apareceu mais foi um comportamento de liberdade, de liberdade sexual, de liberdade de você fazer o que você quiser”, explica Aniele Avila.

Em algumas letras, como no trecho do samba de Martinho da Vila que compõe este título, há a sugestão de uma mulher preguiçosa, como já foi dito, característica típica do malandro. Esses trechos parecem indicar que as malandras pertencem a uma classe média, mas Aniele reforça que “um recorte de classe fica mais difícil justamente porque os próprios compositores brincam com isso. Confundem um pouco isso”. 

Se no caso dos malandros a associação com o trabalho (ou a falta de) é imediata, no caso das malandras o protagonismo é de outro conceito. O ponto chave da malandragem feminina está em outro lugar, e a pesquisadora resume: “a liberdade é a essência dessa malandra, o que ela mais quer é ser livre”.

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