Os governos militares da Bolívia (1964-1982), ao contrário de outros exemplos na América Latina do mesmo período, apresentaram um perfil específico: não se constituíram em uma única ditadura militar, com um único programa, contínuo e coeso, tampouco um mesmo projeto político-econômico. Esses governos militares com características e orientações políticas divergentes entre si, evidenciam a falta de coesão do poder militar na Bolívia e em toda América Latina (ROUQUIÉ, 1984). Contudo, a partir do golpe militar de 04 de novembro de 1964, destacaram-se ao todo três ditaduras nos moldes civis-militares de caráter contrarrevolucionário: as dos generais René Barrientos (1964-1969), Hugo Banzer (1971-1978) e a ditadura narco-militar de Luís García Meza (1980-1981). Nesses governos, a tônica foi o da repressão e desarticulação das organizações de trabalhadores. As medidas adotadas por tais ditadores militares ocasionaram retrocessos sociais evidentes a longo prazo, demonstradas pelos indicadores sociais alarmantes e pelo baixo nível de renda per capita (WHITEHEAD, 2015). Ao final dos regimes militares em 1982, o desmantelamento social e econômico intensificaram crises famélicas e inflacionárias que se seguiram na Bolívia, até recentemente um dos países mais pobres do continente.
Com efeito, para entender os antecedentes a esses golpes militares, deve-se ter em mente que a história boliviana foi marcada pela intensa atuação imperialista, expressa pelos interesses das grandes corporações mineradoras e petrolíferas. Da segunda metade do século XIX até a metade da década de 1930, a Bolívia envolveu-se em conflitos territoriais com seus vizinhos latino-americanos, que custaram ao país perdas significativas de território, incluindo uma saída soberana para o mar. Além disso, ocasionou a perda de prestígio das forças militares, em razão dos fracassos nessas disputas. No último desses conflitos, a Guerra do Chaco (1932-1935), as potências imperialistas e os interesses das elites econômicas internas colocaram em rota de colisão as repúblicas da Bolívia e do Paraguai. A derrota humilhante no conflito acirrou as disputas políticas internas na Bolívia e levou à primeira tomada de poder direta pelos militares desde 1880, através do golpe de 1936. Mas, igualmente, a conjuntura gerada abriu caminho também para a Revolução Nacional de 1952.
No intervalo entre a Guerra do Chaco (1932-1935) e a Revolução Nacional (1952), consolidaram-se as forças políticas bolivianas, mais precisamente na figura do “Movimiento Nacionalista Revolucionario” (MNR), partido inicialmente de orientação liberal social-democrata que, posteriormente, após as Ditaduras Civis-Militares bolivianas (1964-1982), passou para o campo neoliberal e, também, os partidos de esquerda, principalmente o “Partido Obrero Revolucionario” (POR), de linha trotskista; o “Partido de la Izquierda Revolucionaria” (PIR); o “Partido Comunista de Bolivia” (PCB) e as federações sindicais, como a “Federación Sindical de Trabajadores Mineros de Bolivia” (FSTMB) e a “Central Obrera Boliviana” (COB). Na revolução nacionalista de abril de 1952, diversos segmentos políticos uniram-se para levar Víctor Paz Estenssoro e seu vice, Hérnan Siles Zuazo, ambos do MNR, ao poder. Com a implementação do sufrágio universal, de uma profunda reforma agrária e com o afastamento político e o desarmamento das Forças Armadas, a “revolução” nacionalista boliviana, em um determinado período, foi comparada à Revolução Mexicana (1910-1920) e, posteriormente, à Revolução Cubana (1953-1959) (WHITEHEAD, 2015).
No entanto, a “revolução” boliviana não se institucionalizou. Ao longo de quatro governos sucessivos do MNR, as divergências internas ficaram cada vez mais evidentes (WHITEHEAD, 2015). O apoio dos Estados Unidos da América (EUA) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao projeto econômico liberal de controle da inflação e indexação da moeda nacional ao dólar estendeu-se ao apoio financeiro aos projetos sociais emergenciais e de ampliação de reforma agrária no interior do país. Porém, é evidente que a ajuda estadunidense cobrou o seu preço político. O avanço da dependência do auxílio estrangeiro implicou a reconstrução do Exército convencional e, após o triunfo da Revolução Cubana em 1959, as pressões de Washington para que os países latino-americanos se desassociassem do exemplo cubano, acabaram por minar os ideias nacionalistas. Os projetos de ação cívica boliviana nas cidades mais remotas do país, financiados com dinheiro estadunidense desde a década de 1950, eram coordenados pelos militares, o que garantiu a eles certo apoio popular (WHITEHEAD, 2015). Além disso, a polarização política no país avançava até mesmo dentro do próprio MNR. Nesse passo, surgiram forças partidárias à direita do partido, como as falanges, grupos paramilitares de inspiração fascista e o PRA (Partido Revolucionario Auténtico), de linha conservadora radical.
Ao mesmo tempo, a candidatura à presidência de Juan Lechín, líder sindical oriundo do POR, apoiada pelo MNR, foi barrada pelos EUA e pelos militares. Em meio à polarização e pressões externas, Víctor Paz Estenssoro decidiu, em 1964, tentar um terceiro mandato presidencial e admitiu como seu vice o comandante da Força Aérea, general René Barrientos. Mesmo reeleito, em agosto de 1964, Paz Estenssoro ficou cada vez mais isolado e dependente dos apoiadores militares, os quais não viam mais a necessidade de se manterem subordinados a um partido civil (WHITEHEAD, 2015). René Barrientos da Força Aérea e o general Alfredo Ovando, comandante do Exército, firmaram um pacto de partilha do poder e encerramento das rivalidades dentro das Forças Armadas, ao que se sucedeu o golpe de novembro de 1964. Logo em seguida ao golpe, desencadeou-se uma intensa repressão aos trabalhadores e às forças políticas de esquerda. Juan Lechín foi preso e deportado, as greves gerais que se sucederam ao golpe foram brutalmente sufocadas e, com a tomada do controle das minas de estanho pelas forças militares, ocorreram massacres de mineradores em todo o país.
Com o regime em tese consolidado, os opositores completamente enfraquecidos e os trabalhadores nas minas reprimidos, o general Barrientos submeteu-se às urnas, em 1966, para ratificar o seu poder. Mesmo após lograr êxito nas eleições gerais, precisou acomodar em seus ministérios figuras tanto do MNR, quanto do PIR e, também, apaziguar as rivalidades internas das Forças Armadas por meio da participação no governo de futuros políticos militares como, por exemplo, Juan José Torres, militar progressista de esquerda e Hugo Banzer de direita. Concomitantemente, o líder revolucionário Ernesto “Che” Guevara havia desembarcado com uma pequena força guerrilheira na selva boliviana em 1966, presença que tornou-se conhecida em abril de 1967. Barrientos, com o apoio da “Central Intelligence Agency” (CIA) e de conselheiros pagos pela Gulf Oil, conseguiu capturá-lo e executá-lo em outubro do mesmo ano. O assassinato de Che Guevara e os escândalos de corrupção envolvendo empresas petrolíferas, além da presença da CIA nos mais altos níveis do governo, deflagraram um período de agitação política. Estudantes, principalmente da Universidade de La Paz, ativistas, líderes sindicais e oficiais subalternos descontentes, fizeram com que os enfrentamentos chegassem até as ruas das principais cidades bolivianas.
Entretanto, mesmo diante desses problemas, o general Barrientos parecia consolidar o seu poder, inclusive com o aval estadunidense, o que foi interrompido com seu falecimento em um misterioso acidente de helicóptero em 1969. Em seguida, o general Juan José Torres foi eleito, em 1970, com um programa de caráter popular, inspirado no golpe progressista peruano de 1968. No entanto, Torres permaneceu no cargo por apenas dez meses, período no qual realizou-se a Assembléia do Povo, uma espécie de “Central Obrera Boliviana” (COB) disfarçada, que conclamava a formação de milícias populares para o enfrentamento dos interesses das elites mineradoras alinhadas aos interesses estrangeiros. A profunda instabilidade e polarização política tanto interna, quanto regional e global, assim como o acirramento das disputas internas entre os militares, abriram caminho para o golpe do coronel Hugo Banzer em agosto de 1971. Banzer com o apoio do Brasil, dos EUA, dos paramilitares falangistas, das elites econômicas e de políticos de direita do MNR, iniciou a sua “luta contra o comunismo”.
O regime de Banzer (1971-1978) foi responsável por uma repressão implacável contra os camponeses e trabalhadores urbanos, enquanto tomava medidas para o controle de preços e garantir o crescimento econômico, que beneficiava apenas alguns segmentos. Em 1974, Banzer cancelou, de última hora, as eleições agendadas previamente e aplicou o que poderia ser chamado de um “auto-golpe”, conferindo todo poder à uma cúpula militar. A partir disso, o regime atingiu o seu auge autoritário, foram suspensos e considerados ilegais todos os partidos políticos, sindicatos e associações. Até mesmo Paz Estenssoro foi forçado ao exílio. Quanto à função de estabilizar a economia, esta foi assumida diretamente pelos tecnocratas do segmento empresarial, que prosperavam cada vez mais. O assim chamado “milagre econômico boliviano” expressava-se em um crescimento médio anual do PIB em 5,7% (WHITEHEAD, 2015, p. 786).
Com a vitória de Jimmy Carter (1977-1981), nas eleições dos EUA, o quadro geral começou a girar em desfavor das Ditaduras Civis-Militares na América Latina (ROUQUIÉ, 1984). A pressão sobre o regime de Hugo Banzer por violações aos direitos humanos e o fracasso nas negociações por uma saída para o mar, com o Chile de Pinochet, levaram à rápida derrocada do ditador. O opositor Hernán Siles Zuazo conseguiu reunir uma ampla oposição à ditadura, incluindo membros progressistas da Igreja. Outras novas forças de esquerda floresceram, como a de Marcelo Quiroga Santa Cruz, do Partido Socialista. As eleições realizadas em 1978 tiveram resultado favorável ao candidato do regime, porém, sob veementes acusações de fraude. Hugo Banzer então deixou o poder e o entregou novamente a uma Junta Militar, para impedir a chegada de Hernán Siles Zuazo ao poder. Por conseguinte, assumiram sucessivos governos provisórios, que pouco avançaram na possibilidade de constituir um governo constitucional estável novamente.
O vazio político instaurado, as reivindicações populares por investigações dos crimes e abusos do passado e a incapacidade dos políticos civis de formarem uma frente única contra os militares geraram um cenário desinteressante e prejudicial ao desenvolvimento econômico, levando à insatisfação dos setores produtivos. O resultado foi um período de prolongada instabilidade e indefinição política, que culminou com o golpe militar de 1980, encabeçado pelo general García Meza, diretamente ligado ao narcotráfico (WHITEHEAD, 2015). Os cartéis da cocaína, bem estabelecidos durante o regime de Hugo Banzer, período em que intensificaram sua capacidade paramilitar, passaram a atuar diretamente na política do país. O golpe do general Luís García Meza, em 17 de julho de 1980, que depôs a presidenta interina Lídia Gueiler Tejada, com o apoio direto da CIA e do departamento contra narcóticos, a “Drug Enforcement Administration” (DEA), fechou o Congresso Nacional no mesmo dia e instaurou o seu modelo de Terrorismo de Estado, com a consultoria direta do ex-agente nazista Klaus Barbie, da Gestapo, a polícia política de Hitler. Marcelo Quiroga, líder do Partido Socialista, que denunciava os desmandos dos governos militares no Congresso até então, foi brutalmente assassinado, também nessa mesma data.
Os treze meses de narco-ditadura de García Meza foram mais prejudiciais para a economia e organização política do país do que qualquer outro período desde a Guerra do Chaco (WHITEHEAD, 2015, p. 794). Porém, nem mesmo o caráter “contrarrevolucionário” de seu governo era visto de maneira positiva pelo governo de Ronald Reagan (1981-1989) dos EUA, tampouco pelo empresariado nacional. Portanto, as Forças Armadas da Bolívia, mesmo completamente divididas, acabaram por demitir o general García Meza, o qual se refugiou no Brasil, onde foi preso e extraditado para a Bolívia, em 1995, para cumprir pena de prisão por crimes contra os direitos humanos. Em 1982, Hernán Siles Zuazo venceu novamente as eleições e a Bolívia voltou a ter um governo constitucional, porém, os efeitos econômicos e sociais dos governos militares ainda eram evidentes. A Bolívia, em 1980, possuía a pior renda per capita da América Latina, atrás somente do Haiti (WHITEHEAD, 2015). Nesse contexto, Hernán Siles foi compelido a adiantar as eleições para julho de 1985, a qual foi vencida novamente por Víctor Paz Estenssoro para um quarto mandato. Dessa vez, diante de toda a conjuntura, Paz Estenssoro adotou um viés político-econômico neoliberal, sob a aprovação das mineradoras estrangeiras.
Apesar de o general García Meza ter sido julgado e condenado anteriormente, foi somente em 2017, que o presidente Evo Morales, no cargo desde 2006, decretou a criação da “Comisión de la Verdad de Bolivia”, para investigar os crimes de lesa-humanidade praticados pelos governantes e agentes de Estado entre 04 de novembro de 1964 e 10 de outubro de 1982, compreendendo o período das ditaduras de René Barrientos, Hugo Banzer e Luis García Meza. A medida foi adotada devido às pressões populares e de organizações de defesa dos direitos humanos por verdade, memória e justiça, as quais se intensificaram a partir de 2015.